Sob o ponto de vista científico, a tradição
oral desperta muitas interrogações acerca da veracidade ou não dos fatos que
assumem contornos históricos. Na maioria das vezes, mesmo diante considerável
distância cronológica da veiculação inicial de um fato, repetido inúmeras vezes
na memória popular, revela surpreendentes minudências que conduzem à certeza de
que há veracidade no fato e em seus protagonistas. De tão antigas, essas
tradições orais de se contar "causos" nos alpendres sertanejos passam
a ser referenciados como "histórias que o tempo leva". Dentre essa
imensa gama de histórias sertanejas, destaca-se a que faz jus ao ditado popular
"MAIS FORTE DO QUE O FUMO DE ABDIAS".
Após inúmeras investidas em pesquisas de
campo, encontrei o protagonista-mór desse "causo", cujas
particularidades biográficas passo a declinar. O Sr. Abdias Castro de Morais
nasceu na Várzea do Apodi, no lugar denominado de sítio "Carrilho",
no ano de 1897, filho legítimo de Brasiliano José de Morais. Muito moço passou
a ser dono de uma sortida bodega no mesmo sítio onde nascera. Quando atingira a
idade de 25 anos passou a ser acometido pela doença ocular denominada de
glaucoma, o que o levou à cegueira total, ao atingir 30 anos de idade. Como
guardara na memória cada lugar onde se encontrava as mercadorias solicitadas
pelos clientes, nunca cometeu deslizes quanto ao processo de venda de seus
produtos, entregando-os incontinenti, recebendo o devido pagamento cujas moedas
e cédulas reconhecia-as só passando as mãos sobre elas - espécie de tirocínio
divino , como é o caso de muitos exímios tocadores de sanfona que são cegos de
nascença. Em Apodi tivemos célebre bodegueiro conhecido como "Chico
Cego", cujo nome civil era Francisco Rodrigues de Lima, e que vem a ser o
bisavô materno do lídimo amigo e nobre conterrâneo Valdir Leite, que vem a ser
o mesmo Brielzim, distinto filho do saudoso fotógrafo Gabriel Leite.
O Abdias, que compunha a tradicional
família da Várzea do Apodi conhecida sendo dos "Caieira", cujo
referencial familiar não passa de uma deturpação popular do nome CALHEIROS,
sendo certo que seus componentes se assinam, ao final, com os nomes CALHEIROS
DE MORAIS. Sêo Abdias era um personagem que marcava a geografia humana como
sendo uma pessoa do tipo irascível, duro, inflexível, onde sua palavra valia
como uma sentença. Era o típico sertanejo rude, sem "arrodeios" nas
respostas, detentor de singular sinceridade à toda prova. Após perder
totalmente sua visão, passou a ser conhecido como "Abdias
cego".
A sua bodega era o ponto principal onde os
moradores das vizinhanças eram atualizados acerca dos acontecimentos e notícias
que mereciam maior destaque nas famosas conversas de pé-de-balcão. Como toda
bodega que se preza, nunca faltava os famosos papudinhos, que eram os primeiros
a aparecerem logo ao serem abertas as portas da bodega, manhãzinha cedo.
Contam que, certo dia, uma senhora adentrou
a bodega de Sêo Abdias e, sob os investigativos olhares e ouvidos dos
papudinhos fez a seguinte pergunta: - Sêo Abdias o sinhô tem fumo de rolo ? -
Tenho sim! - respondeu o desconfiado Abdias. - Apois o sinhô corte aí um pedaço
de dois tostões. Sêo Abdias dirigiu-se até uma mesinha pequena, onde o rolo de
fumo se encontrava, e cortou o pedaço solicitado pela cliente, voltando logo em
seguida para entregá-lo e receber os devidos dois tostões. Ao receber, a de imediato
a freguesa levou-o até o nariz e cheirou-o intensamente, o que provocou um
efeito repentino que a levou a um espirro seguido de um ruidoso peido.
Desconfiada com a inusitada e imprevisível ocorrência, dirigiu-se ao Sêo Abias
e tascou a seguinte pergunta: - Ô Sêo Abdias, será que o sinhô não tem por aí
um fumo mais forte que esse ? O velho Abdias, que a essa altura já se deixara
dominar por tamanha raiva, disparou: - Tenho não ! Eu só tenho fumo pra
espirrar e peidar. Prá espirrar e cagar tenho não!. respondeu grosseiramente o
velho e afamado bodegueiro. Muito encabulada, só restou mesmo à incauta
freguesa sair de mansinho, após efetuar o pagamento do pedaço de fumo
solicitado.
A partir desse episódio, toda vez que
alguém enfrentava e resolvia um problema de difícil resolução, era logo
parabenizado com a afirmativa: Fulano, você é mais forte do que o fumo do velho
Abdias !.
Artigo enviado por Marcos Pinto -
historiador apodiense
(24.09.2013).